O MUNDO E SEUS CATIVEIROS
A vida humana é sempre uma experiência mundana. Mundo é tudo aquilo que está na ordem. È tudo aquilo que deixou a condição de caos. Cada vez que realizamos um gesto que organiza, que coloca na ordem e que harmoniza, de alguma forma estamos recriando o mundo, isto é, estamos desfazendo o caos.
Mas o mundo é também um lugar de movimentos contrários. Ao mesmo tempo em que há o movimento que encaminha a realidade para a ordem, há também o movimento que retira a vida da ordem e cria o caos.
Pois bem, a palavra “imundo” indica a negação do mundo. Portanto, o imundo pertence à categoria de tudo que está fora da ordem, desarmonizado, caótico. Realidades imundas precisam ser reordenadas para que voltem à ordem original. É assim que atualizamos o gesto criador de Deus no espaço que estamos.
Cativeiro é o local imundo, da desordem, do roubo e da desumanização. Cada vez que um cativeiro é estabelecido, em sua materialidade ou não, alguém está perdendo a capacidade de recriar o mundo por meio de sua própria vida.
O Tratado de Teologia Cristã da Criação nos assegura que o gesto criador de Deus tem sempre continuidade na vida humana. Cada vez que eu me realizo verdadeiramente como pessoa, de alguma forma o Criador continua criando o mundo a partir de mim.
É por isso que podemos dizer que o ser humano é dotado de capacidade recriadora.
Podemos alçar vôo ainda maior. De acordo com a Teologia Cristã, o Verbo de Deus se torna sujeito em cada criatura humana, potencializando-a a ser como Ele e com Ele. Pelo mistério de Deus encarnado, a criatura humana legitima no tempo por meio de sua ação, a Graça, isto é, o amor de Deus sempre presente no mundo.
A ação da Graça de Deus na vida humana trabalha num primeiro momento no fortalecimento de sua identidade. Somos filho no Filho.
Esta compreensão antropológica cristã é riquíssima, pois nos sugere a santidade como aperfeiçoamento do que é humano, e não como sua negação. A Graça de Deus é conferida a cada sujeito de maneira única e particular. O sujeito e sua subjetividade. Cada um move o mundo ao seu modo, de acordo com os atributos
e limites que lhe são próprios. A Graça esbarra nesses limites.
O impulso da Graça na vida humana tem o poder de fortalecer nossa identidade. Vida de santidade é vida de identidade assumida, fortalecida, aprimorada.Santificar é o mesmo que humanizar. Não viver a santidade é o mesmo que abdicar da condição de realeza. Deixar o trono, vai viver a condição desumana que a escravidão confere. Deus confere realeza aos mais fracos deste mundo. Os miseráveis foram revestidos de um manto de glória. Os fracassados foram olhados nos olhos; receberam o convite para festa principal. Qualquer um pode aceitar este convite.
No mundo do caos a situação é outra. É retirar a dignidade, a realeza; é causar o esquecimento, da condição que nos assegura sermos prediletos de Deus, gente de valor.
O imundo é o lugar dos desumanizados. É fácil viver esse projeto, não requer muito esforço. A santidade, o aprimoramento, requer coragem. É mais fácil justificar-nos na preguiça existencial que nos aquieta nas expressões que são próprias de quem já perdeu a batalha. “Sou assim mesmo e não quero mudar!”
Ao contrário, existir com qualidade é desafio de toda hora. O mundo do caos é feito de superficialidades. Sobreviver em meio ao caos deste mundo que passa é um desafio constante.
Sendo tudo tão passageiro, tão artificial e representativo, torna-se muito difícil a experiência de manter a identidade, de manter o pacto com a Graça. As estruturas imundas estão por toda parte. Elas são capazes de provocar o esquecimento da identidade, porque neutralizam o poder da Graça de Deus na vida humana.
Existir de qualquer jeito não requer esforço.
No espaço dos desumanizados, a subjetividade não tem valor.
Fragilizado, o ser humano fica vulnerável, e facilmente é roubado de si mesmo.
No mundo das representações, os seqüestradores não estão encarapuçados, tampouco nos surpreendem em vielas escuras. Eles andam às claras, e nem sempre sabem que estão a serviço dos desumanizados. Também eles foram vítimas de seqüestro.
O elemento chave para que esta incapacidade de percepção prevaleça é justamente a artificialização do mundo. Viver sem pensar, viver sem refletir; viver para machucar e ser machucado.
Transita pelos territórios minados da estrutura dos desumanizados e sofre a triste condição de ser solitário e errante. Por não ser dono de si, dificilmente poderá se oferecer a alguém de verdade. Engrossa a fila dos necessitados deste mundo, perde a oportunidade de fazer valer a sua existência, e passa a desempenhar um papel muito pouco digno de ser aplaudido por quem o vê atuar. O mundo nele não se recria, mas, ao contrário, acelera ainda mais o seu processo de destruição.
Uma coisa é certa: onde houver um ser humano em processo de destruição, nele todo o universo vive a dor de morrer aos poucos.
Quando o seqüestro da subjetividade se estabelece na vida de uma pessoa, o que acontece é justamente a perda de identidade. Seu mundo é transformado em imundo. O que era ordem transforma-se em caoss. É o caos dos afetos, dos pensamentos, das diretrizes.
Obra :Quem me roubou de mim?
Autor: Fábio de Melo
P´ginas47 á 54
Editora Canção Nova
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