26/03 Quinta, um poeta de primeira.
O nome dele é Marcelo Quintanilha. Os amigos o chamam de Quinta.
Ele chegou em minha vida há quase uma década. Veio no formato de um cd. A voz bonita, afinada e levemente tocada por uma rouquidão charmosa me chamou atenção.
A voz não cantava qualquer coisa. Cantava versos tocados por sensibilidade rara. O cd começava com esta preciosa expressão: "Tava com dó de mim. Tava só, tava sim, tava em São Salvador. Tava são, mas não salvo da dor. Que não deixava eu só, tava assim como um nó, um nó dentro de mim.”
Foi uma descoberta surpreendente. Em pouco tempo as músicas de Marcelo Quintanilha estavam todas ressonantes dentro de mim. O cd se se tornou meu prazer diário, e também minha recomendação aos amigos que sei que apreciam a boa música popular brasileira.
O tempo passou. Tentei descobrir tudo o que pude sobre o jovem compositor. À distância, mesmo sem saber, o Quinta me redimia com sua arte. Não foram raras as vezes que sua música me fez viver a mesma experiência dos versos que citei, de me deixar são, mesmo nos braços da dor. A arte nos alivia o peso da vida. Ela é mãe que recobre o filho com proteção delicada, para que o peso da vida não venha nos danificar as feições.
A arte tem o dom de expiar pecados. Ela nos devolve a coragem no momento em que a fragilidade insiste em soprar em nossos ouvidos a frase da desistência, do abandono da luta.
Nada neste mundo é por acaso. No mês passado, tive o imenso prazer de conhecer Vânia Abreu, uma das vozes mais bonita que a Bahia já nos ofereceu. Irmã de Daniela Mercury, Vânia traz na alma a mesma força da irmã, só que resolveu colocar a força nos caminhos do canto calmo. Sua opção musical lhe fez cantar de maneira preciosa os sentimentos do mundo, e com a mesma competência e vigor de Daniela, Vânia empresta a alma à música, em outros formatos.
Minha surpresa foi grande. Vânia era esposa de Marcelo, o Quinta que me fez são, mas não salvo da dor.
De um encontro nasceu o outro. Quando dei por mim estava na casa do casal, que na sonolência de uma madrugada me recebeu para um jantar. À porta estavam eles. A dona da voz e o dono da música. Donos de tantas coisas. Donos de tantos dons, de tantos mistérios, de tantos encantos, de tantos sonhos.
Eu me senti um menino em noite de Natal. O presente era grande demais para ser aberto de uma vez só. Estava diante de Quintanilha, o compositor que foi divisor de águas no oceano de minha musicalidade. Estava diante da voz rouca, aprimorada, do administrador dos versos que tantas vezes me devolveu o dom de sofrer de alegrias.
Era quarta feira, mas ele já era “Quinta”. Um homem à frente de seu tempo. Uma sensibilidade à frente de todas as outras. Um homem, compositor, pai, amigo, cantor que já pisa o chão da primavera, mesmo quando o frio nos abate.
Ele, Quinta de tantos quintais. Quinta de tantas semanas. Quinta de tantos quintetos!
Ele e a mística da quinta-feira santa, momento em que Cristo lava os pés de seus discípulos e os oferece a eucaristia como sacramento da continuidade.
Marcelo Quintanilha é homem eucarístico. Ele se reparte o tempo todo e se oferece como alimento para a humanidade. Basta chegar perto. Sua arte é seu ofício. É nele e através dele que o Quinta se desdobra em meses e anos. Duração de um tempo que não cabe no tempo, porque pertence à ordem de tudo o que nos toca e nos faz esquecer que o relógio existe. Na canção "Nina" ele canta a alegria de ver a filha chegar. Eu ouvi a canção naquela madrugada, no improviso de voz e violão, e mesmo sem nunca ter experimentado a paternidade biológica, pude sorver o que é a alegria de embalar um filho nos braços...
Poeta bom é assim. Ele nos dá o que nunca foi nosso. Ele é eucarístico. Ele desdobra a vida. Ele endireita os caminhos. Ele nos deixa sãos, mesmo que não estejamos salvos da dor.
Na quarta do meu tempo o Quinta chegou pra ficar.
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