As múltiplas faces do sofrimento
Nas estradas da vida, o sofrimento é uma passagem obrigatória.
Causa de muitos dizeres, motivo de muitos motivos, o sofrimento humano figura nas mais diversas culturas como um dos assuntos mais recorrentes. Muitos ramos de conhecimento já se ocuparam dele. Ramos diferenciados, evidenciando suas inúmeras faces.
O sofrimento é naturalmente interessante. Ele nos instiga a uma aproximação respeitosa, pois parece condensar boa parte do significado da vida. Compreender o sofrimento parece nos oferecer uma chave de leitura para todas as questões humanas, afinal ele perpassa toda a problemática da existência. Ele é o "lugar" onde reconhecemos nossa humanidade em sua crueza mais venturosa.
A filosofia, desde sua matriz grega até os dias de hoje, empenhou-se profundamente em suas tentativas de compreender o sofrimento e suas causas mais profundas. A teologia sempre se esmerou em articular a problemática da Revelação de Deus, centro de suas investigações, com sua busca incansável por respostas a respeito do sofrimento da condição humana.
A psicologia sempre se mostrou desejosa de fornecer caminhos que aliviassem o peso de nossas mazelas. O objetivo de sua pesquisa é favorecer ao humano uma estrutura psíquica um pouco mais harmoniosa, livrando-o das neuroses e o ajudando a conviver melhor com os limites que lhes são próprios.
A medicina, enquanto capacitada para dissecar a morfologiado sofrimento, isto é, o corpo que padece, avançou territórios interessantíssimos na luta contra a dor. Ela trabalha com o corpo e sua condição de "matéria temporária".
O corpo é matéria limitada, isto é, ele é propenso aos limites e regras do meio em que está localizado. O corpo, quando exposto ao calor, sofrerá as conseqüências do aquecimento. Quando exposto ao frio, sofrerá as conseqüências do resfriamento. Somos vulneráveis, e esta vulnerabilidade é a porta de muitos sofrimentos.
O corpo é o território da dor. É nele que o sofrimento e todas as suas faces se concretizam. Quando violentado por alguma causa, o corpo responde com a dor.
A dor é uma resposta natural do corpo. Ela sinaliza para o limite que possuímos. É por isso que desde muito cedo aprendemos a driblar os nossos limites. É simples. Minimizar os limites é uma tentativa de evitar a dor. Este aprendizado nós o fizemos a partir de regras práticas do nosso dia-a-dia. Desde criança ouvimos a frase: "Não põe a mão no fogo porque queima!"
O imperativo da expressão era uma forma de apontar os limites que nos são próprios. Não temos uma pele resistente ao calor das chamas. Possuímos este limite, e com ele teremos que viver.
A medicina, ao ocupar-se das fragilidades do corpo, busca encontrar caminhos para superar, ainda que temporariamente, os poderes de sua finitude. O corpo, por estar sujeito à regra que postula que "tudo o que é vivo um dia morrerá", experimenta constantemente o perigo da interrupção de sua duração. Este é o objeto da medicina. O corpo é a matéria da pesquisa, dos avanços e também dos fracassos.
A medicina não pára de buscar caminhos. Nas últimas décadas, temos acompanhado uma forte campanha dermatológica, solicitando à população que implante na rotina de suas vidas o uso do protetor solar. Com o problema das fendas na camada de ozônio, o aquecimento global nos legou, além dos muitos que já temos, um novo limite. Nossa pele não suporta a incidência dos raios que chegam diretamente até nós. Sem a camada de proteção natural, que foi destruída pelas constantes agressões de nossas sociedades industrializadas, somos agora obrigados a buscar um recurso que nos proteja dos raios nocivos do sol.
É a medicina tentando driblar o limite do corpo. É a tecnologia aplicada à preservação da saúde. É a tentativa de minimizar os sofrimentos físicos, aqueles que as radiografias detectam e que os exames revelam. É o corpo e suas possibilidades de dor. É a carne humana e sua fragilidade exposta; é o ser vivente e sua luta desesperada contra a morte.
Mas não temos o desejo de nos ater a estas questões. O nosso querer é menos pretensioso. Queremos, com simplicidade, buscar tecer uma reflexão que nos favoreça um jeito de acolher os sofrimentos que nos afligem, sem permitir que eles nos destruam ou nos retirem a vontade de viver.
Para favorecer este nosso desejo e torná-lo possível, consideraremos o sofrimento a partir da díade: corpo – alma. Dessa forma, ficará mais seguro continuar o caminho que desejamos.
Os sofrimentos do corpo são os diretamente ligados ao contexto da dor localizada, da dor material, física. O corpo que envelhece, o corpo que padece com os limites do tempo.
Já os sofrimentos da alma são os que se referem aos desatinos dos afetos, aos conflitos espirituais, emocionais, morais, enfim, tudo o que dói na vida humana e que não tem uma materialidade, isto é, não pode ser radiografado, nem tampouco identificado em exames laboratoriais.
Quando o nosso sofrimento é localizado e pode ser curado mediante prescrições de remédios, estamos diante de problemas para os quais a medicina já encontroua solução. Se temos uma enfermidade psíquica, fruto de desordens químicas que geram tristezas, ou de distúrbios emocionais, provenientes de nossos distúrbios cerebrais, a medicina oferece inúmeros caminhos e possibilidades para sararmos estas questões.
Mas o que podemos fazer quando estamos diante dos limites que são próprios da vida e para os quais não existem remédios? Como reagir diante dos acontecimentos trágicos a que toda pessoa está sujeita? Como é que podemos nos posicionar diante de tudo o que nos infelicita nestes tempos tão marcados por inseguranças e violências?
Há algum jeito, alguma forma de fortalecer nossa estrutura humana para que o sofrimento seja enfrentado sem que ele se torne a causa de nossa ruína?
É possível administrar os sofrimentos e minimizar suas ações sobre nós? A dor pode nos ensinar alguma coisa? Podemos aprender alguma lição com os limites que são próprios da vida?
É sobre estas questões que queremos refletir.
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