DUAS HISTÓRIAS PARA AJUDAR VOCÊ A ENTENDER
O GRANDE AGRESSOR
Ela me olhou cheia de receios. A pele escurecida por hematomas era a denúncia que não carecia de palavras.
A boca com um pequeno corte no canto esquerdo dificultava a sua fala.Choro de quem não sabe pedir ajuda.
Ela era uma mulher bem-sucedida, emancipada. Mãe de três filhos que já cursavam a faculdade na capital, Dividia o lar com seu marido, um empresário que não se especializou na arte de amar.
Ele entrou na sua vida quando ela ainda era uma adolescente. O casamento aconteceu. Vida no interior é assim. O casamento parece ser uma obrigação a ser cumprida, ainda que não exista amor.
Os atos de violência começaram alguns meses depois de casados. Primeiramente os gritos que não existiram durante o namoro, depois pequenos empurrões, até chegar ao absurdo de surras.
No dia em que me pediu ajuda, ela já acumulava cinqüenta e dois anos, dos quais trinta e quatro vividos ao lado de seu agressor. As agressões não estavam apenas na sua pele. Estavam em toda a sua alma. Aquela mulher chorava por razões novas e antigas.
Perguntei a razão de sofrer calada até aquele dia, e ela confessou que tinha medo de que, pudesse perde-lo. Tudo foi muito velado ao longo da vida.
Ela não conseguia olhar nos meus lhos enquanto me dizia tudo isso. Preferia fixar a atenção no movimento das mãos que seguravam um pequeno pedaço de barbante.
Ouvia sem saber o que dizer. Ousei perguntar se ela queria separar-se dele, e prontamente ela me disse que, se isso acontecesse, ela não saberia o que fazer da própria vida.
Não pude fazer muita coisa. Ela não quis denunciá-lo à polícia. Perguntei o que ela queria de mim. Olhando-me com serenidade, disse-me que só queria desabafar.
Aquela senhora não sabia viver longe de seu agressor. O tempo prolongado no cativeiro, retirou-lhe a coragem de falar dela mesma. Aprendeu a engolir o choro, a não reclamar dos maus tratos.
A surra que deformara seu rosto começou leve. Antes de ser um tapa, foi grito. Permitido o grito, vieram os empurrões. Dos empurrões aos golpes violentos foi um salto pequeno.
Aquela mulher autorizou o invasor.
Pequenas permissões abrem espaços para grandes invasões.
O agressor não foi repreendido. Ele cresceu e alcançou força porque a própria vítima o nutriu. Os inimigos só podem sobreviver à medida que injetamos sangue em suas veias.
O PEQUENO AGRESSOR
Uma outra história. Nessa mulher não existiam marcas de violência.
Nela, o sofrimento não nasceu de agressões do marido que não soube amar, mas de um filho que, aos nove anos de idade, assumiu o comando da casa.
Contou-me que o casamento havia terminado. O marido, incapacitado de transformar a relação que ela estabelecera com o filho, resolveu ir embora definitivamente.
Ela disse que não fez muito esforço para que o marido permanecesse.
Contou-me também que o marido não teve muita influência na educação do menino.
Envergonhada, confessou-me que, por duas vezes, o menino a agrediu fisicamente.
A envelhecida mulher salientou um detalhe interessante. Confessou-me que, mais doído que receber uma agressão física do próprio filho, foi ouvi-lo gritar o desejo de mata-la.
Depois disso, ela percebeu que precisava de ajuda. Recorreu a uma psicóloga, mas o menino se recusou a entrar no consultório. A psicóloga a alertava para a necessidade de retomar a autoridade sobre a criança.
A vida não estava fácil. Estava sendo refém de seu amor. Queria apenas livrar o seu menino da infância triste que ela vivera ao lado de um pai agressor.
Admitiu teme-lo.Ele tem acesso ao seu medo, sabe que é soberano porque reconhece a fragilidade da mulher que não quer errar.
Não querer errar é uma fragilidade terrível. O medo do erro nos neutraliza as forças e não nos permite ir além de nosso pequeno mundo.
O pequeno homem de apenas nove anos de idade é o seu agressor. Amores cegos podem nos conduzir ao caos.
A dura experiência de uma mulher que aos trinta e sete anos de idade é refém de seu filho de nove é a prova concreta dessa afirmação.
Na tentativa de livrar seu filho do sofrimento que um dia havia experimentado, ela privou da disciplina que gera caráter. O limite é a expressão concreta do amor dos pais.
Ouvi o desabafo daquela mulher e confesso que não soube muito o que dizer. Reverter um quadro como esse requer muita sabedoria.
A necessidade de ambos diz respeito à posse de suas identidades. Como vimos anteriormente, a identidade assumida nos posiciona a partir do que podemos, mas também do que não podemos.
Duas histórias de agressões originadas de fontes tão distintas. Vítimas que construíram seus agressores, aos poucos, bem aos poucos.
Isso nos leva a entender que a seriedade da violência não depende do tamanho de quem agredi.
O desafio constante das relações humanas é preservar a liberdade das pessoas. Quando a liberdade é negada, a relação passa a representar um sério risco. Não há pessoa sem a experiência da liberdade.
Obra: Quem me roubou de mim?
Autor: Fábio de Melo
Páginas:75-81
Editora:Canção Nova
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