O único amor perfeito que conheci ao longo de minha vida foi nos jardins. O outro amor perfeito só existe nos livros e nas historias das fada.
O mito do amor romântico parece fortalalecer nas culturas o desejo que o ser humano tem de encontrar no seu mundo exterior a solução para suas imperfeições. O amor perfeito é sempre o amor impossível, o amor inacessível, o amor que não corresponde à realidade e que só se realiza nas obras de ficção.
No contexto da reflexão grega, a perfeição é colocada como fim a que se destina o movimento do artista. A perfeição não é caminho, mas chegada. Dessa forma, o conceito não favorece o movimento, mas, ao contrário, sugere lugar já alcançado, chegado.
A partir do conceito grego de perfeição, nenhuma pessoa pode ser considerada perfeita, afinal, ninguém está pronto. Essa verdade fere profundamente a expectativa de todos os que esperam encontrar pessoas perfeitas para estabelecer suas relações humanas.
Nós, que sentimos regularmente na carne as consequencias de nossas imperfeições,e não temos outro jeito de sobreviver a elas senão assumindo o movimento da vida como oportunidades contínuas de superação e aperfeiçoamento, quando nos encontramos com os outros, precisamos considerar que eles estão vivendo o mesmo processo que nós.
Somos imperfeitos, mas não estamos condenados a ser vítimas de nossa imperfeição. O outro também não está condenado a morrer com seus defeitos. Dessa forma, num encontro de imperfeitos, nasce um desejo concreto de juntos lapidarem suas humanidades.
Mas nem sempre o que ocorre é isso. É quase um movimento natural na vida humana a busca pelas pessoas perfeitas que venham suprir nossas imperfeições. Inconnscientes ou não vivemos uma busca desonesta de pessoas que correspondam às expectativas de nossas projeções e idealizações.
O que temos diante de nós é uma contradição da existência. O mito nos retira do contato com a realidade.
A partir dele, as pessoas passam a procurar realidades ideais. E o conflito se estabelece ainda mais quando percebemos que pessoas que se sabem imperfeitas estão constantemente buscando pessoas e realidades perfeitas.
Aqui está a força da inadequação. As pessoas, no afã de encontrarem a pessoa ideal, a pessoa perfeita, começam a imaginar. Olham, mas não vêm. Esbarram, mas não encontram, porque o encontro requer autenticidade. É justamente aqui que nascem os sequestros. É deste "não encontro" e deste "não ver" que as pessoas começam suas relações.
Começam a projetar uma nas outras suas necessidades e lacunas. Esses cativeiros se estabelecem a partir de pedidos de mudanças de comportamento, atitudes e até mesmo de mudança estéticas.
Desse encontro nasceram duas condições: sequestrados e sequestrador.
Conciente ou não, a pessoa parece inventar a outra. E inventar é uma forma de estabelecer cativeiros, uma vez que a "disposição de si" fica ameaçada.
Fernando Pessoa nos fala desta realidade em alguns versos do poema "Tabacaria"
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
E não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pregada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó
Que não tinha tirado.
Deitei a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
Eu vou escrever essa história para provar
Que sou sublime.
O universo da reflexão do poeta é riquíssima. O personagem que reconhece a "não vida" que a máscara lhe confiriu reassume, ao final da estrofe, a condição de "ser sublime".
Para o poeta, retirar a máscara é assumir a precariedade que o falseamento lhe trouxe.
O poema nos ajuda a pensar melhor. As máscaras são as concretizações dos sequestros.
O roubo foi tão profundo que o outro, incapacitado de resgatar a parte roubada, viu-se obrigado a revestir-se de personagens e de máscaras. "Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me".
Veja, há uma permissão.
Quando essa relação se prolonga no tempo, as pessoas envolvidas se fragilizam muito, porque em ambas há o processo da negação do ser.
"Quando quis tirar a máscara, estava pregada à cara. Quando a tirei e me vi no espelho, já tinha envelhecido." Os mascarados sofrem sozinhos. É um processo doloroso que atinge a muitos.
Conviver com quem optou pela inautencidade causa uma infelicidade profunda. Viver de projeções que não podem ser adequadas à realidade é o mesmo que não viver.
A experiência das projeções nos coloca dentro de um mundo sem sustentação; e mundo projetado não é mundo que realiza., nem faz realizar.